Halloween. Para crianças norte-americanas, doces ou travessuras. Para
Felipa um motivo para colocar uma fantasia e poder dançar e se divertir. Dessa
vez resolveu incrementar e ser a estrela da festa. Afinal, há muito tempo que
entrava e saía das festas de Halloween sem ser devidamente notada. Dessa vez,
não. Estava cansada de ser apenas uma coadjuvante e solitária. O corpo perdera
as gorduras em excesso. Foram quarenta e cinco quilos em um ano. Das fantasias
de Joaninha Sangrenta, Gorda Assassina, Orca Maluca e até a Fada do Bacon,
agora, no cabide, o vestido negro da Mortícia, da Família Adams, com uma
abertura até a virilha, deixando a mostra sua coxa direita e a meia-calça de
rendas negras, o decote que deixava o par de seios, turbinado com silicone,
quase totalmente visíveis, a peruca negra e comprida, o capuz que cobriria a
sua cabeça e algo que determinava a fantasia. A foice. Isso mesmo, uma foice,
como a da Morte.
Diante do espelho, vestida como a Morte, se sentia uma top model fantasmagórica
e linda, muito linda, chegou até a ganhar um próprio beijo, dirigido ao seu
reflexo.
A festa era quase que íntima, quarenta pessoas no máximo, ganhara seu
convite de uma amiga do trabalho que viajaria naquele dia. Conhecia poucas das
pessoas que lá estariam, mas o importante era a diversão, o impacto de sua
entrada triunfal no salão, por isso se atrasara propositalmente, queria ver os
olhares famintos dos homens e o desdém nos olhares femininos. Tudo planejado.
Entraria pelo salão calmamente e cumprimentando todos os presentes, com um
sorriso aberto e o balançar de cabeça, chegaria até o balcão do bar, pisaria no
apoio de um dos banquinhos e deixaria o corte da saia correr pela coxa até
expô-la por completo, um leve debruçar apoiado nos cotovelos e deixar exposto o
par de volumosos seios ao barman. Riu e foi para o taxi que a aguardava.
Alguns psicólogos afirmam que a fantasia á apenas um disfarce do desejo
de se tornar um personagem para podermos extroverter e brincar, mas por
momentos, sem que percebamos, assumimos esse personagem, suas características e
comportamentos.
Tudo corria como planejado, a porta se abrira e sua entrada absorvida
pelo olhar patético do porteiro, correndo de cima até embaixo, parando na
abertura que exibia a coxa grossa e firme. Uma escadaria levava do hall ao
salão os convidados. Planejado pelos anfitriões, cada vez que alguém se
aproximava e alcançava a metade da escada, as luzes mais claras se acendiam, e
o convidado podia ser visto por completo ao entrar no salão. Assim foi com ela
e como planejado, olhares se voltaram para ela, que caminhava como uma noiva em
direção ao altar, pausadamente, um sorriso, um balançar de cabeça e até um
aceno. Destino, balcão do bar. A Morte chegava ao salão, impetuosa, linda e
sensual, talvez coubesse um giro como se estivesse acompanhando a dança.
Deveria ter seguido o plano. Um rodopio, o salto enroscando na barra do
vestido, um tropeço, a foice atingindo uma das mesas, derrubando os copos de
bebidas e um grande estatelar no piso.
Toda dolorida, machucada, caída naquele piso gelado, maquiagem
misturando-se com as lágrimas e a plateia, que até aquele momento estavam mudos
de admiração, agora gargalhavam, copiosamente, e como vingança pela entrada
fenomenal, não ergueram ajuda ou demoraram. Ela levantou-se, enxugou as
lágrimas, mancou um pouco, porém se refez prontamente, apoiou-se na foice e sem
levantar a cabeça, de vergonha, foi até o balcão do bar. O barman, sem
conseguir conter o riso com a cena bizarra, perguntou se ela queria beber algo.
Um olhar gelado e fixo. Bloody Mary foi o pedido. Mais risos emudecidos e
preparou a bebida.
Ela de esgueio via o espetáculo promovido pelos convidados, sussurros,
confidências e risos, muitos risos. O capuz cobriu parte de sua vergonha e dor,
o joelho doía, a palma da mão estava ardendo e a festa estava encerrada ou não.
Antes era a vergonha da sua obesidade, agora que havia emagrecido, implantado
silicone, feito cirurgias reparadoras e muitos exercícios, estava do mesmo
jeito de antes, envergonhada e jogada no fundo do poço. Não podia ficar assim,
não investira tanto dinheiro para ser uma palhaça no meio do picadeiro. O beijo
enviado para o espelho martelava sua mente. Ela se amava e odiava os outros.
Odiava. Odiava. Odiava...
Roubou a faca detrás do balcão. O barman trouxe a bebida e ela caminhou
até a escadaria, deixou a taça na base e desceu calmamente, o porteiro ameaçou
em abrir a porta e não percebeu a lâmina indo em direção do seu pescoço, um
engasgo, um murmúrio inaudível e o cair no chão. Ela travou a porta e empurrou
o corpo do infeliz para que a bloqueasse, abriu a caixa de fusíveis e desligou
a chave geral, arrancou os seis fusíveis e começou a subir a escadaria, dessa
vez as luzes não alertaram os convidados sobre a sua chegada. Isqueiros eram
acesos e apagados depois um grito abafado e o tossir engasgado do proprietário
do mesmo. Alguns minutos depois, uma figura na penumbra do salão, caminhava
pelo piso escorregadio pelo sangue dos convidados, quando encontrava um
obstáculo, uma cabeça, um tronco ou pernas, movia a perna por sobre e
continuava a caminhar. Parou no alto da escadaria, pegou a taça, sentou no
último degrau, deixou a coxa exposta, acendeu um cigarro sob o soar de sirenes
ao longe, alguém havia chamado a polícia antes de se encontrar frente a frente
com a Morte, bebericou um gole do Bloody Mary e sorriu, afinal ela era a Morte.
A porta foi arrombada e vários fachos de luzes iluminaram o topo da escada e um
sorriso monalístico.