terça-feira, 27 de outubro de 2015

HALLOWEEN - Fantasia Mortal - Kiko Zampieri






Halloween. Para crianças norte-americanas, doces ou travessuras. Para Felipa um motivo para colocar uma fantasia e poder dançar e se divertir. Dessa vez resolveu incrementar e ser a estrela da festa. Afinal, há muito tempo que entrava e saía das festas de Halloween sem ser devidamente notada. Dessa vez, não. Estava cansada de ser apenas uma coadjuvante e solitária. O corpo perdera as gorduras em excesso. Foram quarenta e cinco quilos em um ano. Das fantasias de Joaninha Sangrenta, Gorda Assassina, Orca Maluca e até a Fada do Bacon, agora, no cabide, o vestido negro da Mortícia, da Família Adams, com uma abertura até a virilha, deixando a mostra sua coxa direita e a meia-calça de rendas negras, o decote que deixava o par de seios, turbinado com silicone, quase totalmente visíveis, a peruca negra e comprida, o capuz que cobriria a sua cabeça e algo que determinava a fantasia. A foice. Isso mesmo, uma foice, como a da Morte.
Diante do espelho, vestida como a Morte, se sentia uma top model fantasmagórica e linda, muito linda, chegou até a ganhar um próprio beijo, dirigido ao seu reflexo.
A festa era quase que íntima, quarenta pessoas no máximo, ganhara seu convite de uma amiga do trabalho que viajaria naquele dia. Conhecia poucas das pessoas que lá estariam, mas o importante era a diversão, o impacto de sua entrada triunfal no salão, por isso se atrasara propositalmente, queria ver os olhares famintos dos homens e o desdém nos olhares femininos. Tudo planejado. Entraria pelo salão calmamente e cumprimentando todos os presentes, com um sorriso aberto e o balançar de cabeça, chegaria até o balcão do bar, pisaria no apoio de um dos banquinhos e deixaria o corte da saia correr pela coxa até expô-la por completo, um leve debruçar apoiado nos cotovelos e deixar exposto o par de volumosos seios ao barman. Riu e foi para o taxi que a aguardava.
Alguns psicólogos afirmam que a fantasia á apenas um disfarce do desejo de se tornar um personagem para podermos extroverter e brincar, mas por momentos, sem que percebamos, assumimos esse personagem, suas características e comportamentos.
Tudo corria como planejado, a porta se abrira e sua entrada absorvida pelo olhar patético do porteiro, correndo de cima até embaixo, parando na abertura que exibia a coxa grossa e firme. Uma escadaria levava do hall ao salão os convidados. Planejado pelos anfitriões, cada vez que alguém se aproximava e alcançava a metade da escada, as luzes mais claras se acendiam, e o convidado podia ser visto por completo ao entrar no salão. Assim foi com ela e como planejado, olhares se voltaram para ela, que caminhava como uma noiva em direção ao altar, pausadamente, um sorriso, um balançar de cabeça e até um aceno. Destino, balcão do bar. A Morte chegava ao salão, impetuosa, linda e sensual, talvez coubesse um giro como se estivesse acompanhando a dança. Deveria ter seguido o plano. Um rodopio, o salto enroscando na barra do vestido, um tropeço, a foice atingindo uma das mesas, derrubando os copos de bebidas e um grande estatelar no piso.
Toda dolorida, machucada, caída naquele piso gelado, maquiagem misturando-se com as lágrimas e a plateia, que até aquele momento estavam mudos de admiração, agora gargalhavam, copiosamente, e como vingança pela entrada fenomenal, não ergueram ajuda ou demoraram. Ela levantou-se, enxugou as lágrimas, mancou um pouco, porém se refez prontamente, apoiou-se na foice e sem levantar a cabeça, de vergonha, foi até o balcão do bar. O barman, sem conseguir conter o riso com a cena bizarra, perguntou se ela queria beber algo. Um olhar gelado e fixo. Bloody Mary foi o pedido. Mais risos emudecidos e preparou a bebida.
Ela de esgueio via o espetáculo promovido pelos convidados, sussurros, confidências e risos, muitos risos. O capuz cobriu parte de sua vergonha e dor, o joelho doía, a palma da mão estava ardendo e a festa estava encerrada ou não. Antes era a vergonha da sua obesidade, agora que havia emagrecido, implantado silicone, feito cirurgias reparadoras e muitos exercícios, estava do mesmo jeito de antes, envergonhada e jogada no fundo do poço. Não podia ficar assim, não investira tanto dinheiro para ser uma palhaça no meio do picadeiro. O beijo enviado para o espelho martelava sua mente. Ela se amava e odiava os outros. Odiava. Odiava. Odiava...
Roubou a faca detrás do balcão. O barman trouxe a bebida e ela caminhou até a escadaria, deixou a taça na base e desceu calmamente, o porteiro ameaçou em abrir a porta e não percebeu a lâmina indo em direção do seu pescoço, um engasgo, um murmúrio inaudível e o cair no chão. Ela travou a porta e empurrou o corpo do infeliz para que a bloqueasse, abriu a caixa de fusíveis e desligou a chave geral, arrancou os seis fusíveis e começou a subir a escadaria, dessa vez as luzes não alertaram os convidados sobre a sua chegada. Isqueiros eram acesos e apagados depois um grito abafado e o tossir engasgado do proprietário do mesmo. Alguns minutos depois, uma figura na penumbra do salão, caminhava pelo piso escorregadio pelo sangue dos convidados, quando encontrava um obstáculo, uma cabeça, um tronco ou pernas, movia a perna por sobre e continuava a caminhar. Parou no alto da escadaria, pegou a taça, sentou no último degrau, deixou a coxa exposta, acendeu um cigarro sob o soar de sirenes ao longe, alguém havia chamado a polícia antes de se encontrar frente a frente com a Morte, bebericou um gole do Bloody Mary e sorriu, afinal ela era a Morte. A porta foi arrombada e vários fachos de luzes iluminaram o topo da escada e um sorriso monalístico.







quinta-feira, 9 de julho de 2015

A Menina do Último Trem - autor Kiko Zampieri

Eu morava numa cidade próxima da capital. Era uma cidade-dormitório. Afinal todos os moradores, em sua maioria, só voltavam para dormir, no dia seguinte lá estavam embarcando no trem para irem trabalhar ou estudar. Eu era um deles. Trabalhava e estudava na capital. Geralmente embarcava no primeiro trem lotado e voltava no último, sempre vazio, se não fosse pela presença de uma garota no fundo do vagão todas as noites.
Foi a partir de fevereiro que começamos a nos encontrar no mesmo vagão, todas as noites no último trem, os cinco dias da semana.
Estranho era que ela sempre estava cabisbaixa e nunca tinha visto o seu rosto, devido aos longos cabelos castanhos que acortinavam a sua face. Silenciosa durante toda a viagem e seguia para a última estação, já que eu descia na penúltima.
Geralmente, eu cochilava durante a viagem, uns vinte minutos entre a estação que embarcava até a minha descida. Ela sempre estava no mesmo lugar quando eu entrava no vagão.
Pensei várias vezes tentar conversar ou chamar sua atenção, deixando cair a mochila ou uma crise de tosse, porém ela não movia um músculo. Algumas vezes achei que estava morta, contudo a mudança de vestuário mostrava que ela descia em seu destino e depois voltava.
Durante aqueles três meses eu ficara intrigado com a presença daquela garota no fundo do vagão, cheguei até a mudar de assento e me aproximar, mas achei que seria inconveniente incomodar alguém que parecia não querer manter nenhuma conversa.
Lembro bem daquele dia revelador. Era uma sexta-feira. Enquanto eu, rotineiramente, regressava para a minha casa e ela se mantinha em seu lugar no fundo do vagão, outros estavam festejando o alvorecer do final de semana e nesse dia, duas estações depois que embarquei, três rapazes entraram no vagão e se acomodaram entre eu e ela. Estavam alcoolizados e tentavam chamar a atenção da garota com as vozes altas e piadinhas inconvenientes. Fiquei no meu lugar, afinal eu não era nenhum cavaleiro da idade média e nem tinha um porte físico adequado para intimidar aquele grupo. Fiquei na espreita e atento.
Um deles foi se aproximando, segurando nas barras laterais para se manter em pé, o balanço e o alcool faziam com que o corpo dele fosse de um lado ao outro. Ela se mantinha cabisbaixa, o cabelo acortinando seu rosto, as pernas juntas e as mãos acomodadas sobre elas.
Ele falava alguma coisa, quase inaudível, e depois gargalhava, voltando-se para os outros rapazes, depois repetia e até que os outros também se levantaram e dessa vez me olharam enviesado, como se quisessem que eu me mantivesse no meu lugar. Não precisava nem pedir. Contudo um instinto incontrolável não conseguiu me conter e levantei.
 - Ei! Deixe a menina em paz! Gritei, mesmo com o coração acelerado pelo medo.
- Senta aí e fica bem quietinho senão vai sobrar para você. Disse o maior deles.
 Já que eu tinha enlouquecido e vestido a armadura reluzente, fiquei em pé e ameaçador, punhos cerrados e os pensamentos em turbilhão rodopiavam a minha mente, mais pelo medo do que pela estratégia de luta.
Um deles, então, resolveu vir até mim e acabar com aquela representação burlesca de herói de história em quadrinhos. Antes porém, que ele me alcançasse um grito estridente fez se ouvir pelo vagão, fazendo com eu fosse jogado para trás e os dois vidros das janelas em frente se estilhaçassem.
Por alguns segundos, quatro homens ficaram estáticos e desorientados. Eu fui me recobrando e me apoiei numa das barras verticais, um dos rapazes ergueu seu braço na intenção de tocar a cabeça da garota, foi um ato infeliz. Antes que ele alcançasse seu alvo, ela se levantou, não era mais a garota, confesso que não consegui identificar, pois as luzes internas começaram a piscar e pude ver aquela frágil garota saltar sobre o rapaz. Um grito e um pequeno uivo e foi ela para cima dos outros dois. Eu estava petrificado.
Em poucos segundos a luz ficou firme novamente e pude então ver com mais clareza, era uma cena aterrorizante, três corpos dilacerados e espalhados pelo chão do vagão e a menina sentada ao lado de um deles, o último. Fechei meus olhos e fiquei esperando o meu fim. Senti um hálito quente em frente ao meu rosto, não abri os olhos. A respiração ofegante e o calor que circundava meu rosto, como se quisesse me desenhar. De repente senti uma aspereza úmida subir pelo meu rosto, como uma língua e um ronronar tranquilo.
Quando o trem parou na estação, abri os olhos, três corpos dilacerados jaziam no chão frio do vagão. Uma poça do sangue esticara, devido ao movimento do trem, por baixo dos bancos. A menina não estava mais ali. A porta se abriu e saí apressado, alcancei a catraca, que quase deu duas voltas, subi as escadarias e corri aterrorizado pelas ruas escuras e desertas, sempre com a impressão de estar sendo seguido.

Ao chegar na esquina da minha rua, onde havia uma loja de discos e um poste, cujo facho iluminava sua grande vitrine, parei ao ver meu reflexo. Não era eu, era a menina com a cabeça levantada, deixando escapar um sorriso monalisado no rosto. Nesse momento percebi que as minhas mãos estavam sujas de sangue.