Eu morava numa cidade próxima da capital. Era uma cidade-dormitório.
Afinal todos os moradores, em sua maioria, só voltavam para dormir, no dia
seguinte lá estavam embarcando no trem para irem trabalhar ou estudar. Eu era
um deles. Trabalhava e estudava na capital. Geralmente embarcava no primeiro
trem lotado e voltava no último, sempre vazio, se não fosse pela presença de
uma garota no fundo do vagão todas as noites.
Foi a partir de fevereiro que começamos a nos encontrar no mesmo vagão,
todas as noites no último trem, os cinco dias da semana.
Estranho era que ela sempre estava cabisbaixa e nunca tinha visto o seu
rosto, devido aos longos cabelos castanhos que acortinavam a sua face.
Silenciosa durante toda a viagem e seguia para a última estação, já que eu
descia na penúltima.
Geralmente, eu cochilava durante a viagem, uns vinte minutos entre a
estação que embarcava até a minha descida. Ela sempre estava no mesmo lugar
quando eu entrava no vagão.
Pensei várias vezes tentar conversar ou chamar sua atenção, deixando
cair a mochila ou uma crise de tosse, porém ela não movia um músculo. Algumas
vezes achei que estava morta, contudo a mudança de vestuário mostrava que ela
descia em seu destino e depois voltava.
Durante aqueles três meses eu ficara intrigado com a presença daquela
garota no fundo do vagão, cheguei até a mudar de assento e me aproximar, mas
achei que seria inconveniente incomodar alguém que parecia não querer manter
nenhuma conversa.
Lembro bem daquele dia revelador. Era uma sexta-feira. Enquanto eu,
rotineiramente, regressava para a minha casa e ela se mantinha em seu lugar no
fundo do vagão, outros estavam festejando o alvorecer do final de semana e
nesse dia, duas estações depois que embarquei, três rapazes entraram no vagão e
se acomodaram entre eu e ela. Estavam alcoolizados e tentavam chamar a atenção
da garota com as vozes altas e piadinhas inconvenientes. Fiquei no meu lugar,
afinal eu não era nenhum cavaleiro da idade média e nem tinha um porte físico
adequado para intimidar aquele grupo. Fiquei na espreita e atento.
Um deles foi se aproximando, segurando nas barras laterais para se
manter em pé, o balanço e o alcool faziam com que o corpo dele fosse de um lado
ao outro. Ela se mantinha cabisbaixa, o cabelo acortinando seu rosto, as pernas
juntas e as mãos acomodadas sobre elas.
Ele falava alguma coisa, quase inaudível, e depois gargalhava,
voltando-se para os outros rapazes, depois repetia e até que os outros também
se levantaram e dessa vez me olharam enviesado, como se quisessem que eu me
mantivesse no meu lugar. Não precisava nem pedir. Contudo um instinto
incontrolável não conseguiu me conter e levantei.
- Senta aí e fica bem quietinho senão vai sobrar para você. Disse o
maior deles.
Um deles, então, resolveu vir até mim e acabar com aquela representação
burlesca de herói de história em quadrinhos. Antes porém, que ele me alcançasse
um grito estridente fez se ouvir pelo vagão, fazendo com eu fosse jogado para
trás e os dois vidros das janelas em frente se estilhaçassem.
Por alguns segundos, quatro homens ficaram estáticos e desorientados.
Eu fui me recobrando e me apoiei numa das barras verticais, um dos rapazes
ergueu seu braço na intenção de tocar a cabeça da garota, foi um ato infeliz.
Antes que ele alcançasse seu alvo, ela se levantou, não era mais a garota,
confesso que não consegui identificar, pois as luzes internas começaram a
piscar e pude ver aquela frágil garota saltar sobre o rapaz. Um grito e um
pequeno uivo e foi ela para cima dos outros dois. Eu estava petrificado.
Em poucos segundos a luz ficou firme novamente e pude então ver com
mais clareza, era uma cena aterrorizante, três corpos dilacerados e espalhados
pelo chão do vagão e a menina sentada ao lado de um deles, o último. Fechei meus
olhos e fiquei esperando o meu fim. Senti um hálito quente em frente ao meu
rosto, não abri os olhos. A respiração ofegante e o calor que circundava meu
rosto, como se quisesse me desenhar. De repente senti uma aspereza úmida subir
pelo meu rosto, como uma língua e um ronronar tranquilo.
Quando o trem parou na estação, abri os olhos, três corpos dilacerados
jaziam no chão frio do vagão. Uma poça do sangue esticara, devido ao movimento
do trem, por baixo dos bancos. A menina não estava mais ali. A porta se abriu e
saí apressado, alcancei a catraca, que quase deu duas voltas, subi as
escadarias e corri aterrorizado pelas ruas escuras e desertas, sempre com a
impressão de estar sendo seguido.
Ao chegar na esquina da minha rua, onde havia uma loja de discos e um
poste, cujo facho iluminava sua grande vitrine, parei ao ver meu reflexo. Não
era eu, era a menina com a cabeça levantada, deixando escapar um sorriso monalisado no rosto. Nesse momento
percebi que as minhas mãos estavam sujas de sangue.